Do Jornal O Globo, por João Ubaldo Ribeiro:
- Claro, nós estamos acostumados desde a infância. Acho que das primeiras coisas que me lembro na vida é meu avô dizendo na mesa do almoço que aqui no Brasil só tinha ladrão.
- Gozado, isso. Eu também tenho essa mesma lembrança, só que é com minha avó. E ela já começava falando mal do finado vô Estácio, marido dela, que morreu antes de eu nascer.
- Falando mal? Sua avó se queixava de que seu avô era ladrão?
- Não, o contrário. Pelo que eu sei da família, porque naquela época ninguém contava nada aos meninos, eles sempre se deram mal e uma das coisas em que ela mais dava no pé dele era que ele não era ladrão, achava ele um otário. “Lambão”, ela usava muito essa palavra quando se referia a ele, aquele lambão. Ela não se conformava, dizia que esta vida era curta, Deus no final perdoava tudo mesmo e eles passaram uns apertos porque o velho não era ladrão como devia. Aliás, como devia, não, isso ela já achava pedir muito. Mas que pelo menos roubasse uma coisinha, o suficiente para deixar a família numa situação mais confortável.
- É muito interessante isso que você está me contando. Interessante que uma senhora que nasceu no século dezenove falasse essas coisas.
- É, era interessante mesmo. A velha Laura lia jornal, acompanhava a política, falava bem e era mais desbocada que a Dercy Gonçalves. Até já grande, eu curtia muito ouvir ela conversando. Ela dizia “eu sou da realidade, meu filho, comigo é na realidade”. Me deu muito esculacho porque nessa época eu era metido a socialista e ela dizia que a coisa mais insuportável é juventude idealista. Ela falava que a única coisa pior do que um idealista eram dois idealistas, ela não queria saber de nada disso, o negócio dela era a realidade.
- Mas eu não quero dizer interessante nesse aspecto. É que a gente fica pensando que, no tempo, dela, as pessoas tinham uma posição muito mais contra a roubalheira, quer dizer, a gente fica pensando que a moral era mais elevada. Essa história dela esculhambando seu avô porque ele não era ladrão...
- Ela tinha razão! Eu dou toda a razão a ela! Se ele tivesse sido ladrão, meu pai, que era filho único, tinha herdado uma fortuna e eu, que só tenho uma irmã, provavelmente também ia estar numa boa, pelo menos umas propriedades aí eu ia ter.
- Não, não vem me dizer que você está de acordo com essa roubalheira toda que a gente fica vendo no jornal, isso é uma vergonha.
- Vergonha de quê? Quem sai aos seus não degenera, o mal do brasileiro é esse, é querer ser uma coisa que não é. Vergonha é os caras serem uns incompetentes e não roubarem direito, para depois pegarem eles. Se bem que não aconteça nada e eles fiquem numa boa como sempre ficaram, mas é chato esse negócio de prisão temporária, aparecer na televisão, contratar advogado que também mete a mão no que pode, é sempre chato. Mas, se não fosse isso, não era vergonha nenhuma. Aliás, eu vou mais longe, eu engrosso logo. O que nós temos, como povo, é que assumir que todo mundo é ladrão mesmo e quem não é ladrão está contribuindo para a perda da identidade nacional. Falei bonito como você gosta, falei não? É isso mesmo, perda da identidade nacional.
- Não, tu tá curtindo com minha cara, tu não vai achar que a nossa identidade nacional é a ladroagem, não é assim.
- Quando que não foi assim? Te mira no exemplo da minha avó, cara, seja da realidade! Antes da minha avó teve o pai dela e o pai do pai dela e o pai do pai e por aí vai. Como é que tu acha que ela descobriu que a realidade é que ladrão tradicionalmente se dá bem, sempre se deu bem aqui, faz parte da nossa herança cultural? Gostou de novo? Faz parte da nossa herança cultural, nós temos mais é que aproveitar do que querer se livrar dela, porque não vamos conseguir nunca, tá no sangue, cara.
- Não está no sangue coisa nenhuma. Eu acredito que o povo é honesto. Alguns políticos, algumas autoridades, alguns funcionários, alguns empresários podem ser ladrões, mas nem todos, longe disso, nem todos mesmo.
- Ah, é? Não é verdade, é tudo ladrão, mas vamos dar de barato que alguns não sejam, pelo menos assim diretamente, passando os cinco dedos diretamente na massa. E de onde é que os ladrões saíram, foi de Marte? Importaram de um país fornecedor de ladrão? Não é tudo desse povo mesmo, cara, onde é que tu vive, deixa de ser cego, enxerga a realidade! O nosso povo é maravilhoso, é todo mundo ladrão e quem não rouba é porque ainda não encarou a realidade. Tem que subverter o pensamento. Roubar é uma realidade positiva, temos que incutir isso na cabeça de uma vez por todas e, se cada um roubar, sem frescuras, num instante a sociedade está equilibrada. O desgaste é querer lutar contra nossa própria natureza, isso nunca vai dar certo.
- Mas pelo menos um furo tem, nesse teu pensamento. Se todo mundo começar a roubar de todo mundo, vai acabar ninguém tendo de quem roubar.
- Desculpe, mas teu raciocínio demonstra ignorância da ciência econômica, isso é elementar. Com todo mundo roubando de todo mundo, o ciclo econômico se fecha, vai ter sempre alguém de quem roubar. O que roubou hoje será roubado amanhã e vice-versa. Entendeu? Está na cara, o nosso atraso é não aceitar a realidade, a nossa vocação, e não querer usar ela a nosso favor, tudo preconceito pequeno-burguês, como se dizia antigamente. Taí, acabo de trair a vó Laura, fiquei idealista, mas desse jeito ela ia aprovar. Vou fundar o roubismo, tu pode ter certeza que é a única solução para o país, e pode escrever que eu já sou roubista radical, eu sou roubista do B.
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De repente é isso aí. Perder a vergonha e encarar o "Roubismo" como opção...
Vou pensar. ;-)
6 de junho de 2004
A roubalheira num boteco do Leblon
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