4 de junho de 2004

E ainda sobre o episódio da casa de custódia...

Uma análise pontual e bem equilibrada do Luiz Garcia do Globo.

Reproduzo o texto aqui porque na publicação da próxima coluna se perde o acesso a ele.

Notas do motim

As casas de custódia do sistema penitenciário estadual foram criadas para acabar com o excesso de presos em xadrezes de delegacias.

Dizia-se, com razão, que os distritos policiais, quase todos em áreas residenciais, eram bombas-relógio sempre prestes a explodir, com motins, massacres e fugas em massa.

Em suas celas amontoavam-se, em condições desumanas, presos à espera de julgamento e até já condenados. Em março de 1999, quando foi anunciada a criação das casas de custódia, havia 7.300 presos em delegacias no Estado do Rio. Na época, o então governador Anthony Garotinho prometeu que até o fim de 2000 os xadrezes das delegacias estariam em condições normais: servindo apenas para deter presos antes de se decidir o seu destino.

Existem hoje diversas casas de custódia. Em suas celas amontoam-se, em condições desumanas, presos à espera de julgamento e até já condenados. Você leu essa frase no parágrafo anterior, e não foi por acaso. A repetição tem poderosa eloqüência, não?

Esta semana, dezenas de presos morreram durante uma rebelião na Casa de Custódia de Benfica, que hospeda mais de 800 detentos.

O motim obviamente vai para a conta do governo estadual. Alguns fatos podem auxiliar a escolher os judas a serem malhados:

1. A Secretaria de Segurança acusa a Secretaria de Administração Penitenciária de incompetência. Disse o subsecretário de Segurança, Marcelo Itagiba, que só os seus homens evitaram uma fuga em massa.

2. O secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos, alegou inocência, com o argumento de que a prisão foi construída em lugar inadequado. Foi desmentido pelo subsecretário de Segurança, por ordem do titular. Mas no dia seguinte a governadora Garotinha — esposa desse titular — citou o secretário da área penitenciária como o porta-voz do governo sobre o episódio.

3. Do secretário de Segurança, Anthony Garotinho, ao longo da crise não se viu a figura nem se ouviu a voz. Talvez imagine que isso é politicamente inteligente, por ser prócer do PMDB e estarmos em ano eleitoral. Em outubro, saberá ao certo se fugir de cena numa hora dessas traz vantagem ou prejuízo.

4. Pela Secretaria de Segurança, só se manifestou o sub Itagiba. Foi infeliz ao dizer que os únicos responsáveis pela chacina eram os assassinos. Esqueceu-se de que o Estado responde pela integridade física de seus presos — do ponto de vista moral, mais ainda se são acusados ainda não julgados. Itagiba mais tarde retificou o erro. Desfez-se a suspeita de ignorância, substituída por um reforço na impressão de precipitação e falta de controle emocional.

5. O único suposto herói no episódio foi um pastor evangélico que trabalha com detentos e tem relações pelo menos afetivas com o Comando Vermelho. Teve de ser chamado — reforçando um prestígio não necessariamente salutar — porque as autoridades ainda não descobriram que precisam ter funcionários especialmente treinados para negociar nesse tipo de situação.

6. A quantidade de buracos abertos nas paredes da casa de custódia é apenas uma das muitas provas concretas de que o prédio — um antigo quartel da PM adaptado — não tem condições para a missão que recebeu. Muito menos para receber presos de facções inimigas.

7. É insuficiente o número de guardas penitenciários. No período em que o número de presos de todo o sistema passou de 9.600 para 20 mil, o de agentes cresceu apenas de 2.600 para 3.300. Há também PMs reformados reunidos numa cooperativa, mas a maioria é idosa.

São itens em número suficiente para definir uma crise grave. Ela inclui decisões erradas, falta de unidade na equipe de governo e abdicação do exercício pessoal e visível de liderança pela governadora e o secretário de Segurança.

É um quadro de tal gravidade que talvez não seja necessário ir além e também tentar descobrir por que existem tantos presos à espera de julgamento. Afinal, o que pode existir de novo a ser dito sobre a reforma do Judiciário?

- Luiz Garcia, O Globo, 04 de junho de 2004

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