13 de agosto de 2004

Armários

- Mamãe, deixa a porta do armário aberta tá?
- Meu filho...
- Por favor mamãe, por favor... Eu tenho medo...
- Tá bom. Deita que eu vou ficar aqui com você um pouquinho.

Com o corpo da mãe junto ao seu, o cafuné e a canção de ninar susurrada; o sono veio em segundos. E ele teria dormido direto não fosse o ruído surdo do armário sendo fechado de mansinho pela mãe que saia do quarto.

Apavorado, num salto ele estava sentado, chorando...

- O armário aberto! Aberto!

***

Ele acordou assustado. Suava frio e tinha o rosto molhado de lágrimas. Olhou de esguelha para o armário do quarto - não o quarto de criança que acabará de visitar no pesadelo infantil, mas seu quarto de adulto, de homem de 42 anos. Tinha medo de encontrá-lo fechado ou, muito pior, entreaberto. Mas ele estava totalmente aberto, como ele sempre o deixava.

Ele já tinha pensado em retirar a porta do armário. Aliás, de todos os armários da casa. Mas o senhorio certamente não iria aprovar seu arrojo decorativo. Então ele simplesmente deixava as portas abertas. Todas. Armários do quarto, da cozinha, do banheiro. Abertos. Sempre.

Era um problema, claro. As empregadas tinham de ser treinadas a não fechá-los. Ou não deixá-los fechados para quando da chegada do patrão. Ele perdeu as contas de quantas dispensou porque quase o mataram ao deixar os armários da cozinha fechados - ou muito pior, o do quarto.

Olhou para o teto por algum tempo, rolou a cabeça para o rádio-relógio - 3:30 da manhã - e decidiu que já que estava acordado, podia usar o banheiro.

O apartamento, um quarto e sala, era decorado espartanamente. Ele não gostava de ficar dentro de casa e passava todo o tempo que podia na rua. De casa, muito cedo, para o trabalho. Do trabalho para o bar. Do bar, o mais tarde possível, para casa. Um dormitório. Nada mais.

Levantou-se no escuro, desorientado - qual apartamento era esse? Ele mudava com freqüência também, não gostava de morar mais que um ano no mesmo lugar. Levou alguns segundos para se orientar e então deslizou até a porta e acendeu a luz do quarto. Mais que suficiente para enxergar a porta do banheiro e o vaso.

Sonolento, ainda suando, sentou-se ao vaso.

E notou a cortina do chuveiro fechada.

Deu um salto em direção a porta. Tremia. Como? Ele não havia fechado a cortina, ele tinha certeza! Como? Ou teria?!? Não importava! A cortina estava fechada! Fechada!

- Fechada! Merda...

O suor lhe escorria pelo rosto novamente. Tinha de abrir a cortina mas estava paralisado de medo. A luz que entrava pelo quarto não era suficiente. Esticou-se para o interruptor do banheiro...

- Merda! Merda!

A lâmpada do banheiro estava queimada. Só a tênue luz do quarto avançava tímida pela parte da porta que seu corpo não cobria.

A cortina.

Estendeu a mão trêmula para a cortina. Todos os anos do pesadelo recorrente aflorando no suor que lhe escorria no rosto e na nuca. A visão, quase palpável, do menino de quatro anos sentado na cama gritando e chorando.

- Não há nada aí atrás. Nada. Calma. É só abrir a cortina e vai ficar tudo bem.

Começou a abrir a cortina e percebeu, no aumentar da fresta, que estava errado. Mas era tarde... O braço trêmulo continuava a abrir a cortina mesmo enquanto balbuciava, apavorado, o não repetidas vezes. A cortina meio aberta e a visão que se apresentava o fizeram dar um passo para trás, o grito de pavor engasgado e a respiração suspensa na tensão dos anos de medo culminando naquele momento.

Caiu para trás, bateu a cabeça na pia e atingiu o chão duro levando consigo a cortina, arrancada violentamente.

***

- E aí?
- Parece um acidente mesmo. O corpo taí no chão há uns três dias de acordo com a avaliação do legista.
- Quem encontrou?
- A empregada que vem duas vezes por semana.
- Causa da morte?
- O legista acha que o cara tropeçou, agarrou a cortina tentando se segurar, bateu a cabeça na pia e morreu. Tem pouco sangue no chão, mas parece que o trauma é que foi severo.
- Hum...
- Você não parece muito convencido.
- Não, faz todo o sentido... é que...
- O quê?
- Eu não sei. Olha a palma da mão esquerda. Tá vendo essas marcas?
- É, o legista viu isso. Parece que o cara segurou a cortina com tanta força que as unhas dele cortaram a cortina e cortaram a carne da mão. Tiveram que quebrar os dedos dele para abrir a mão.
- E o rosto dele... Quantas vezes você viu um rosto assim?
- Contorcido?
- É. O que você acha que fez o rosto ficar assim?
- Dor?!
- Não. Dor não... Podem levar...

O detetive saiu do caminho e assistiu os bombeiros retirando o corpo para o rabecão. Acendeu um cigarro e sussurrou entre baforadas:

- Medo. Muito medo.

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