28 de maio de 2004

FICÇÃO: O fim da rotina...

Ele entrou em casa, verificou se havia alguma mensagem na secretária eletrônica e, como de hábito, pendurou chaves, crachá e óculos ao lado da geladeira. Guardou mochila e casaco no armário da sala. No fogão alguma coisa cozinhava na panela de pressão com o seu "pshhh-pshhh-pshhh" ritmado e monótono. Pela janela da cozinha podia ver o gramado do quintal - precisava cortar a grama de novo, maldita chuva que faz a grama crescer num ritmo que inferniza a vida de quem só cuida dela por obrigação - e Renata brincando com os filhos dos vizinhos.

- Lúcia? - Gritou.

Nenhuma resposta. Ele tinha certeza que ela já havia chegado por causa do carro na garagem e porque a filha brincava lá fora. Talvez a esposa tivesse ido a casa da vizinha...

O gato estava sobre a mesa de novo. O bicho fora idéia da filha, que queria um animal de estimação de qualquer maneira. E, num determinado momento, Lúcia cedeu argumentando que é bom a criança ter um bichinho pois "ensina a ter responsabilidade e cuidado". Só que quem estava aprendendo era a própria Lúcia - aprendendo que crianças de oito anos não tem interesse em "responsabilidade e cuidado". Ele havia se prometido não se envolver, até porque o gato não parecia ter muita afinidade com ele. Ou ele com o gato.

- Desce daí. Xô.

A reação normal do gato seria olhar para ele com desdém e não se mexer. Mas dessa vez não. Pelos eriçados e um rosnado estridente, pulou da mesa e correu escada acima para os quartos. "Ótimo!" - pensou - "Se ele subir na minha cama de novo eu juro que ele vai dormir na garagem...".

Foi quando ele ouviu a voz de Lúcia falando com o gato. Ela tinha acabado de sair do banheiro usando o roupão de sempre e uma toalha enrolada na cabeça - ele sempre achou que ela ficava linda assim, os olhos amendoados destacados no rosto pálido emoldurado pela toalha. Ouviu-a dizer:

- Que foi Messias? Não, nem pensar em subir na cama, vem cá... Você sabe que o Paulo odeia encontrar pelos no travesseiro dele e que você já anda por um fio de ser mandado pro abrigo. Não querido, vem cá, eu não deixo ele te mandar pro abrigo não... fofinho...

"Ah, a voz pro gato!" ele pensou, sacudindo a cabeça. Ela dizia que era puro ciúme tolo dele, mas ela realmente tinha um timbre e um tempo de voz especiais que ela só usava com o - para ele incômodo - novo "integrante" da família. O absurdo apego que ela desenvolveu pelo animal era quase que ofensivo.

- Lúcia? Meu bem?

O telefone toca antes que ela possa responder. Ele sobe as escadas e para na porta do quarto, encostado no umbral, admirando as costas semi-expostas no roupão que se abrira um pouco quando ela sentou. Com a extensão do quarto à mão ela atendeu num tom alegre e jovial. O quarto, na penumbra das cortinas fechadas, exalava o cheiro do xampu preferido dela. Ele podia ouvir as gargalhadas das crianças no quintal, por trás das cortinas as janelas deviam estar abertas. Resolveu esperar que ela desligasse. O gato saltou da cama - garagem com certeza! - para o canto do quarto e lá ficou encolhido, olhando de esguelha para ele.

- Alô?
...
- Sim, é da residência dele, quem fala?
...
- Sou Lúcia, a mulher dele. Quem está falando?

O vento, entrando pela janela numa lufada mais forte balançou e ergueu as cortinas. Lúcia ajeitou o roupão sobre os ombros enquanto olhava nervosa para a janela. Os olhos dela... a expressão tensa...

- Lúcia, o que foi? Quem é? - disse ele.

Ela não o respondeu. Começou a tremer. Ele, preocupado, deu dois passos na direção dela.

- Sim, é o carro dele. O que está acontecendo?
...
- Ai meu Deus... - as lágrimas correram enquanto a voz passou do nervosismo desconfortável aos soluços de choro.
...
- O quê? Endereço? Sim é esse... Sim, obrigada, eu vou aguardar...

Ela desligou. Soluçava e chorava descontrolada, jogada à cama com os cabelos começando a aparecer através da toalha-turbante que se desmanchava. Ele deu mais um passo na direção dela e, antes que pudesse dizer qualquer coisa, ouviu a porta da cozinha batendo.

- Mãe?

Ouviu os passos da filha subindo as escadas.

- Lúcia, meu amor, o que foi? - disse se aproximando - A Renatinha vai ficar assustada com essa choradeira, amor! O que aconteceu?

A filha entrou correndo antes que ele alcançasse a esposa. Ele se virou para contê-la e... de alguma forma ela passou por ele. Ela pulou na cama com a mãe e a abraçou.

- Mãe, o que foi? Por que você está chorando?

- Filha - ele interveio - deixa o papai conversar com a mamãe um pouco. Vai ver TV e nós já falamos com você...

Antes que a menina pudesse responder, a mãe a abraçou. Soluçava desconsolada. Ele nunca havia visto a mulher assim. As lagrimas dela já molhavam os longos cabelos louros da filha, que assustada acariciava os braços da mãe e murmurava baixo - já quase chorando - "mãe? mãe?".

- Lúcia, meu amor o que é isso? - disse ele - Lúcia, me responda!

Ele se esticou e tentou segurar os ombros da companheira de quase dez anos e, para seu espanto, sua mão atravessou o corpo dela. Assustado ele olhou para as próprias mãos sem entender o que estava acontecendo. O gato, com um rosnado tenso, passou correndo e fugiu do quarto. Ele ainda olhava, incrédulo, para as próprias mãos e para a esposa, quando finalmente entendeu o que a esposa balbuciava para filha entre soluços de desespero:

- Minha filha, a polícia ligou. O carro do seu pai... seu pai... ele... eu acho que seu pai morreu...

(Autor: C.E. Lopes)

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